quinta-feira, 15 de julho de 2010

PENSAÇÕES SEM PÉ NEM CABEÇA III – Por que não sei o que deveria saber?


 

POR Heitor Rocha Gomes

De repente eu comecei a entender. Deixei de ser engraçado em certos lugares, com certas pessoas. Ao mesmo tempo que me descubro limitado e impotente diante do meu fazer percebo que é ai que está meu tesouro e minha força. Quando descubro o que me falta, quando sinto minha incompletude saio do conforto, da normalidade, da inércia construída pelas certezas calcadas nas especulações superficiais sobre o outro. De repente me encontrei perdido no meio de tantas vozes reconfortantes que diziam é assim mesmo, as coisas sempre foram assim...os professores são aqueles que cumprem os comandos, os pedagogos são aqueles que ajeitam as coisas, os técnicos da internos da SEDUC são aqueles que cuidam de remendar os rasgos históricos deixados pela negligência de uma política educacional perversa e antiquada. Os governos vão passando e cada um conduz o barco da educação conforme lhe apraz, conforme os ventos políticos partidários que lhes sopram as narinas. E nós os remadores vamos nos adequando conforme os toques e os ritmos que nos são impostos...existem aqueles que acham que os comandantes passam e que sobram apenas os marinheiros, que tolos é que são...essa constante troca de comandantes acaba por criar uma permanência de comando e uma permanência de comandados, um continuo recomeço de história.

    Mas por que iniciei essa conversa? Porque cada vez que vejo uma criança analfabeta, faminta, violentada e sem perspectiva...vejo nela meu filho lindo, cada vez que vejo os olhos de criança ou adolescente na escola vejo os olhos grandes do meu filho...eu me vejo. Cada vez que vejo uma professora desesperada com os cabelos em pé, impotente diante de uma criança que chora, que grita, que rasga, que esmurra, que xinga e que não lê me solidarizo com ela e com a criança. Mas a minha solidariedade não aplaca a dor de quem não consegue nem de quem não consegue ensinar...iniciei essa conversa por conta disso: não vou descansar minhas armas enquanto essa realidade não der sinal de mudanças. Estou falando de mudanças e não de arremedos, de fingimento, de superficialidades...eu quero tudo que é direito. Em nossa casa estamos educando nosso filho para ser um rei solidário, fraterno, digno sábio, espirituoso, criativo, mas, estamos o educando para ser REI. Não queremos menos. Nós o educamos com o nosso suor, com ausência, as vezes...mas também com nossa firme presença mesmo nas ausências. Por que vou querer menos para o filho do outro. Isso é sacanagem, é perversidade, mesmo que ingênua as vezes.

Comecei essa conversa por que parece que eu me ausente do meu lugar de pedagogo e me refugie no conforto da mediocridade e da informalidade do achar isso e achar aquilo. Que eu aceite que a falta de cuidado com a educação é histórica e que não tem jeito, que as coisas vão se ajeitando devagar. Enquanto isso aceitamos normalmente 26 crianças entre 09 e 10 anos não saibam ler e interpretar um texto simples. Que adolescentes de 12, 13 e 14 não saibam construir um pequeno texto com coerência e coesão básica...que passem para a quinta série, onde será tratado sem a menor especificidade, onde será mais um, sem a mínima preparação para essa nova fase.

Comecei essa conversa porque uma menininha de 07 anos falou coisas tão terríveis para uma criança de sua idade que não vou ousar reproduzir neste dialogo para não ampliar a energia negativa daquele momento. Como pode uma criança parecer tão cruel? Como ela pôde falar daquela forma, como pôde me xingar daquele jeito, por que estava tão furiosa agredindo todos que passavam? Por que estava fora da sala, por que sua professora a deixou fora da sala, por que ela vai para casa sozinha desde seus cinco anos, por que ela é que leva e traz seu irmão, por que ela não conhece as letras mesmo vindo da educação infantil, por que sua fúria arrefece quando precisa pegar o leite e a merenda, por que sua é ausente, por que, as vezes, chega sua na escola, onde aprendeu xingar? Por que eu não soube o que fazer? Pensei em denunciar a mãe a Conselho Tutelar...pensei tantas coisas. O fato a situação da menina não é a única, após a denuncia do conselho precisa-se de acompanhamento familiar, precisa-se de suporte da Assistência Social, precisa-se garantir segurança, continuidade serviço até que o risco cesse. Mas aí as demais políticas funcionam como a educação fazendo o que dá, improvisando, Conselho Tutelar visitas as famílias quando dá, a Assistência Social tem um Programa denominado CRAS que não cumpre a função para o qual foi criado, a saúde é ausente...no final da história é uma grande brincadeira de mal gosto.

Comecei essa conversa para registrar, grafar minha indignação, e nesse momento não me interessam as formalidades estéreis,a tecnicidade descompromissada, o compromisso distante daqueles que querem organizar a dor dos outros sem empatia...bancando os salvadores inorgânicos. Não assumi a educação para ser simpático com educandos, educadores, pais, comunidade, diretores, técnicos, secretários, diretores...nem também para ser antipático. Eu assumi ser educador para transformar com o outro, para fazer a diferença...não tenho interesse de ser mais a fazer qualquer coisa...para o inferno com a mesmice confortável que produz escravos revoltados que matam si mesmos e outros em igual situação de escravidão sejam eles educadores o educados.

Comecei essa conversa para reafirmar que sei quem sou, por que estou sempre a me reconhecer no olhar do outro que me olha. Descobrindo de onde vim, construindo onde estou e projetando para onde vou... sei que não estive sozinho, sei que não estou sozinho, sei que não estarei sozinho... há os solidários.


 

Alagoinhas – BA 15 de julho de 2010